Portanto, só os ciclos são eternos

Alê Magalhães
4 min readAug 8, 2020

Certamente quem tem mais de vinte anos já ouviu aquela música do Peninha que o Caetano também gravou: "Sonhos". Se você ainda não escutou, porque é sub-vinte ou está muito distraído do cancioneiro popular, procure este hino e depois volte aqui. Mas, se você já escutou, segue o fio.
Nesta canção, a passagem do tempo é determinante na história. É possível fazer um paralelo com as estações do ano. E começa na primavera.
A primeira estrofe fala do encontro casual do eu lírico com alguém que ele leva na brincadeira a princípio, mas depois vai se envolvendo. "Tudo era apenas uma brincadeira e foi crescendo, crescendo, me absorvendo e eu me vi assim completamente seu". É tão delicioso quando isso acontece. É como quando a primavera chega revolucionando tudo, trazendo uma beleza que floresce e que dá alegria de viver.
Depois deste momento de encantamento, vem o verão, o sol, o calor, a paixão intensa. Aquilo que explode dentro da gente de uma forma que não dá para controlar. O poeta cantou assim: "Vi a minha força amarrada no seu passo / Vi que sem você não tem caminho / Eu não me acho / Vi um grande amor gritar dentro de mim / Como eu sonhei um dia." Aquele sentimento de que, na presença da ausência do outro, o sujeito se desnorteia. Só quem passou por isso sabe como é. Quem ainda não passou - sim, tenho leitores jovens - aguarda que em algum momento vai chegar.
O verão está preparando a terra para o outono, para a colheita, mas não nos esqueçamos de que é no outono que as folhas das árvores começam a amarelar e cair. É quando o sol se junta à brisa, quando experimentamos temperaturas mais amenas, mesmo ao sul do Equador. É quando tudo que foi plantado está para ser colhido. Na canção, ficou deste jeito: "Quando o meu mundo era mais mundo / E todo mundo admitia / uma mudança muito estranha / Mais pureza, mais carinho / Mais calma, mais alegria / No meu jeito de me dar / Quando a canção se fez mais forte / Mais sentida / Quando a poesia fez folia em minha vida." A sequência vai crescendo, mostrando as mudanças, a percepção destas mudanças pelos outros, a alegria de ver a semente que desabrochou em flor estar amadurecendo como um fruto. Só que, não nos esqueçamos, eu já disse, o outono amarela as folhas. E elas caem.
A chegada do inverno não pode nos pegar desprevenidos: chá quente, meias nos pés, casaco aquecendo o peito. Mas, de vez em quando, não tem jeito, entra uma corrente de ar e a rinite (ou outra ite da sua preferência) dá o ar da sua (des)graça. É preciso que a colheita tenha sido farta para se passar bem protegido e alimentado por esta estação. Quando algo interrompe este fluxo, quando existe uma quebra de expectativas, o inverno pode ser mais triste.
Na canção, até o momento, o eu lírico tinha falado apenas de si mesmo, era a autorreferência que estava em cena. No entanto, no jogo do amor, não conseguimos jogar sozinhos o tempo todo, as regras se alternam. Quando isso acontece com o eu lírico, é para anunciar que as expectativas criadas não correspondiam à realidade. Peninha (e/ou Caetano) canta assim: "Você veio me contar / Dessa paixão inesperada / Por outra pessoa." É o inverno que chega, soprando um vento gelado.
Nesta hora, é importante lembrar das lições que já tivemos: a terra é redonda, "jamais conseguirão deter a chegada da primavera", "portanto, somente os ciclos eram eternos". O eu lírico sabe disso, que tudo que ele viveu vai estar com ele, que a primavera chega novamente e que um novo ciclo se inicia. Já não se é mais o mesmo, não se pode ser o mesmo depois de tudo que se passou. Ele transborda de sabedoria (ou seria de ironia?): "Mas não tem revolta, não / Eu só quero que você se encontre / Ter saudade até que é bom / É melhor que caminhar vazio / A esperança é um dom / Que eu tenho em mim / (Eu tenho sim) / Não tem desespero, não / Você me ensinou milhões de coisas / Tem um sonho em minhas mãos / Amanhã será um novo dia / Certamente eu vou ser mais feliz."
No fundo, penso que ele sabe - ainda que não de forma totalmete racional - que viveu algo que o modificou completamente e, apesar de o final não ser o que ele esperava, a viagem até ali vai ficar marcada para sempre.
Não é incomum que isso aconteça quando a gente está se relacionado com alguém, não é mesmo? Agora, imagina que isso acontece na sua relação com um livro. Já aconteceu com você? Comigo já.
Aquela leitura que começa e encanta de uma forma que todos os sabores que você experimenta ao ler são deliciosos. O livro vai crescendo, chega a um ponto de total envolvimento, mas em algum momento algo sai do script e as expectativas que você criou são quebradas. E aí se percebe um desencontro entre o que se esperava e o que acontece na narrativa. E, pronto, o final não é o que você queria nem desejava. Está bem longe de cumprir as promessas que você achava que tinham sido feitas no início. O problema é do livro? O livro é ruim? Será que a questão não é o que você projetou para a história?
Não gostar do desfecho de um livro me faz sempre repensar a minha relação com ele, mas isso não quer dizer que a trajetória precise ser apagada. Também não quer dizer que esteja tudo as mil maravilhas. Fica, sim, um gosto amargo na boca. Tem quem goste do amargo, mas eu sou dos doces. Eu sou muito dos doces.

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Alê Magalhães

Leitora. Professora. Escritora. Administra o instagram literário @literaleblog.