Mônica vai jantar, Davi Boaventura

Alê Magalhães
4 min readNov 24, 2019

“ela naquele banheiro tomava banho e se desmontava se tornando este farrapo que arremessa o aparelho de telefone por detrás dos travesseiros”

Anos atrás, conversando com uma amiga sobre facebook, ela me falou que entendia que cada pessoa assumia uma persona: a mãe, a gateira, a torcedora fanática de um time, a baladeira, a noveleira, era sempre uma delas que dominava a timeline (claro que esse papo foi beeeem antes de todas nos tornarmos cientistas políticas). Entrei nesse jogo que ela propôs e logo de cara “descobri” qual era a minha persona: a professora, porque eu gostava de postar dia sim e no outro também sobre as minhas práticas e vivências com meus alunos. Retomando essa persona (que no caso sou eu mesma), queria relembrar aqui com vocês duas “lições” de língua portuguesa: paragrafação e pontuação.

Não sei se vocês ainda se lembram, mas um texto argumentativo, por exemplo, é dividido em parágrafos, quando você muda o assunto; ou, no caso dos narrativos, quando acontece algo novo numa história (ou a bel prazer da autora e do autor, porque literatura não está aí para seguir os preceitos da gramática, né).

Outra lição que eu gostaria de relembrar é sobre pontuação, mais especificamente sobre vírgulas. No Ensino Médio, a professora tentou te explicar que não se separa o sujeito do verbo, que as orações adjetivas explicativas se diferenciam das restritivas pelo uso da vírgula e que o vocativo também ficava separado do restante da frase por uma vírgula. Mas isso talvez você não se lembre, porque o Ensino Médio é aquele momento em que você só se preocupa com uma coisa: ela-ele gosta de mim? Mas eu acho que você ainda se lembra da tua professora do Ensino Fundamental dizendo que a vírgula marcava uma respiração, uma pausa.

Pois bem, aí eu queria fazer uma pergunta sobre esses nossos tempos: quem é que anda dando pausas? Quem é que ainda presta atenção na própria respiração? Quem é que consegue organizar os pensamentos com toda essa aceleração que estamos vivendo?

Como vocês sabem, o meu forte é dar aula de literatura, então tenho pensado, sobretudo, em como autores e autoras têm se colocado dentro disso tudo. Como a literatura divide o tempo, como ela planeja, como as histórias são encadeadas ou fragmentadas, como se pode lançar mão de um flashback? Fato é que ainda há alguns textos muito “arrumadinhos” para tudo que está acontecendo ao nosso redor, mas a literatura contemporânea, sobretudo a brasileira, tem me surpreendido ao trazer para a linguagem o impacto dessa velocidade, dessa desarrumação dos parágrafos, dessa não-vírgula, não-pausa, não-respiro.

Um livro em que isso é feito de uma forma magistral — no duplo sentido mesmo, já que o livro é fruto do curso de mestrado do autor — é “Mônica vai jantar”, do baiano Davi Boaventura, lançado pela Dublinense/Não editora. A narrativa é escrita sem vírgulas, pontos continuativos, pontos finais nem parágrafos. É construída como um jorro, um jato de pensamentos, que tomam corpo diante do choque com o que a personagem principal acabara de saber. O romance conta um curto espaço de tempo da vida de uma mulher que tem uma conversa muito difícil com seu namorado-marido e, ainda assim, precisa se arrumar para comparecer a um compromisso de trabalho.

O ritmo da nossa leitura é completamente ditado pelos pensamentos da protagonista que se alternam, por exemplo, entre vestir uma meia-calça e repassar toda a sua relação amorosa para saber em que ponto houve a falha, talvez o abismo, que levou seu namorido a ser flagrado se masturbando em um ônibus. Esse livro é quase como se estivéssemos diante de uma timeline do facebook em que os espaços-tempos-postagens vão se sobrepondo. Só que diferente daquele gesto de rolar o dedo para cima e ficar na superficialidade das coisas, a leitura do romance de Davi Boaventura não nos deixa nunca permanecer nas beiradas. Essa experiência é um mergulho profundo e precisamos ter um tanque de oxigênio bem cheio, porque adentramos regiões abissais do ser humano.

É importante dizer ainda que a protagonista é uma mulher que está na casa dos vinte e poucos anos, tem um relacionamento estável, emprego, um carro, casa financiada, mas a vida dela se torna um verdadeiro cataclisma. Tudo isso me faz, cada vez mais, ter a certeza de que não há garantias nem segurança, a vida é uma aventura diária e a cada momento ela está pronta a nos surpreender de muitas formas. Disso tudo, a grande questão que me ficou ao fechar o livro foi até que ponto conhecemos as pessoas com as quais convivemos e nos relacionamos. Será que já nos tornamos apenas as personas que tempos atrás reservávamos apenas para as redes sociais?

--

--

Alê Magalhães

Leitora. Professora. Escritora. Administra o instagram literário @literaleblog.