Carta a Elena Greco (Lenu)

Alê Magalhães
6 min readFeb 27, 2021

Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 2021.

Cara Elena Greco,

Daqui em diante vou chamá-la de Lenu, espero que não haja problema para você. Demorei a escrever esta carta, pois não sabia como enviá-la. Pensei primeiro em mandar para o endereço da Anita Raja, já que, bom, você sabe. Mas achei melhor não dar muito crédito aos tabloides. Depois pensei em mandar para o Domenico Starnone, mas também desisti, porque não tenho tantas certezas quanto a… você sabe. Como era algo que eu precisava dizer, ou melhor, pedir, estou enviando esta carta para a editora que publica os livros da Elena Ferrante, sua xará e amiga, assim tenho certeza de que ela vai chegar até você.

Estou aqui para falar sobre Lila, quer dizer para falar sobre o sumiço da Lila e a solução que você encontrou de escrever para que ela não se esvaísse da sua memória. Só que não tem como a gente entrar logo neste assunto antes de eu perguntar como você está. Não estou agora acompanhando a vacinação em Nápoles, sei apenas que os laboratórios têm descumprido os acordos de entregas de vacinas. Torço para que você já tenha tomado, pelo menos, a primeira dose. Aqui no Brasil, o nosso problema nem é tanto a questão dos laboratórios não entregarem. Aqui, o nosso problema é o plano do governo de nos torturar, cumprindo uma promessa de campanha. Apesar de ter muita gente que achou que era apenas para impressionar e votou nele pelo seu ministro da economia, a principal promessa de campanha tem sido cumprida: tortura e morte. Alguns o chamam de fascista, outros de nazista ou genocida, os nomes talvez façam diferença para quando, no futuro, tentarem entender o que está acontecendo. Agora, eu o chamo de ceifador. Acho que resume bem a figura que hoje ocupa o cargo de presidente. Já são tantas vidas perdidas, Lenu. E olha que já estamos há um ano das primeiras notícias da chegada do vírus nesse país onde moro.

Eu me lembro muito bem das imagens que chegavam da Itália e de me sentar em minha sala e chorar. Estava acompanhando a questão do vírus desde que ele surgiu na China, estava preocupada com um amigo meu que morava lá. Falamos algumas vezes, ele me explicava que só saía para o mercado e a farmácia, mas eu não conseguia entender muito bem o que ele estava dizendo. Confesso. Achei que era algo, bom, você sabe, a China é diferente. Foi só com as imagens acachapantes que começaram a chegar da Itália que eu entendi o quão devastador era o vírus. As pessoas mortas sendo retiradas de casa apenas um dia depois, os parentes tendo que conviver com os corpos em seu próprio lar, algo que era tão comum, mas que hoje não é mais e não estamos preparados para lidar com isso. Embora a morte seja a única certeza da vida, acabamos a afastando cada vez mais de nós como se pudéssemos evitá-la. E não podemos, não é mesmo. Com a decisão de que tudo seria fechado, comecei a ver os vídeos das pessoas ainda caminhando pelas piazzas italianas completamente vazias. E isso parecia bastante inacreditável. Parecia algo de um filme de ficção científica que mostrava um habitante de outro planeta, no futuro, voltando ao planeta Terra vazio e devastado.

E foram chegando os números da Itália e eles iam cada vez mais aumentando. Comecei a achar que trezentas pessoas mortas por covid-19 em um dia era um número alto e absurdo. E esse número foi crescendo até chegar a 919 mortos no dia 27 de março de 2020. A esta altura nós aqui já estávamos também em quarentena há 15 dias. Foi no tempo em que compreendemos que nosso isolamento não seria de 15 dias como tinham previsto (ou apenas dito para nos enganar). E agora, veja, estamos há quase um ano convivendo — talvez fosse melhor dizer comorrendo — com o coronavírus no brasil (eu escrevo agora com minúscula mesmo o nome do país). Nesta última semana, chegamos ao recorde de mortes em um dia, foram 1582 pessoas que perderam a vida em 24 horas. Claro que o país aqui é muito maior que a Itália, mas isso não significa muita coisa em termos de perdas e luto. O que significa para mim é que são mil-quinhentas-e-oitenta-e-duas pessoas que se foram e que deixam aqui outras tantas em luto pela partida delas. Os números têm sido alarmantes, não sei se você está acompanhando os noticiários internacionais. Imagino que você deve estar apenas recebendo as notícias dos USA, já que suas filhas moram lá. Trump fez um enorme estrago e nesta semana, os USA chegaram à marca de 500 mil pessoas mortas. O discurso do presidente Joe Biden me comoveu. De verdade. Aqui no brasil temos um cosplay mal ajambrado de Trump no poder, mas em termos de matar, ele é bem eficiente, já são mais de 250 mil pessoas mortas. 50 mil pessoas morreram de coronavírus nos últimos 45 dias. E sabe o que o ocupante da presidência fez na última live dele? Disse que o uso de máscaras pode causar problemas no futuro. Que futuro, Lenu? Você consegue enxergar o futuro?

Mas eu te disse que queria falar sobre a Lila, então vamos lá. Queria te dizer, Lenu, que gostaria de também escrever sobre as pessoas que eu amo. Não porque qualquer uma delas tenha sumido. Não. Mas é justamente porque eu tenho medo de que isso aconteça. Eu tenho muito medo de que alguém que eu amo suma. Desapareça. Não esteja mais aqui. Diferente da Lila, esse sumiço não seria por vontade própria, mas por tudo isso que eu falei antes. Estamos enfrentando o vírus como todo mundo, mas temos no comando do país um homem que tem como maior ídolo um torturador. Isso pode explicar muita coisa na minha opinião. Apesar de estar seguindo em frente com a vida, mesmo sem entender ainda muito bem o que isso significa, eu quero escrever sobre o passado. Quero contar sobre a vida que está desaparecendo ou que talvez tenha desaparecido, quero guardar na minha memória, quero poder dividir essa memória com outras pessoas. A minha sensação é de que a vida que eu tinha resolveu desaparecer. Um dia eu acordei e ela não estava mais lá. Ela não pegou as roupas dela no armário, ela não deixou nenhum bilhete. Ela não levou nem celular nem carteira. Ela simplesmente desapareceu e todas as câmeras de vigilância do meu prédio, dos prédios ao redor, nenhuma delas capturou esse momento. Eu queria reconstituí-la com a minha escrita com as minhas palavras. Eu queria deixar bem guardada como era a minha vida, como era a vida antes dessa pandemia nos afetar. Eu tenho a impressão de que a vida que tínhamos não vai voltar, assim como Lila não voltou. É impossível termos de volta uma vida como a que tínhamos quando estamos carregando tantos corpos, tantas vidas perdidas.

Eu estou escrevendo, Lenu, para pedir que você me ensine a fazer isso. Não sei se serei capaz, nem se terei forças agora, mas eu quero aprender. Sei que você passou por muita coisa: a infância logo depois da Segunda Guerra, o autoritarismo, o machismo, o abuso, a máfia que dominou o teu bairro e a tua cidade, as decepções amorosas, as dificuldades com a tua família e o sumiço da Lila. Momentos difíceis, eu entendo. E acho que você conseguiu fazer um retrato deles de modo que eu, que não vivi tudo isso, senti como se fosse comigo. Eu quero escrever, Lenu, para que as pessoas que me leem consigam sentir um pouco desse momento. Quem sabe elas possam fazer, no futuro, o luto que não estamos fazendo agora. Agora, alguns pensam apenas em sobreviver enquanto outros não pensam, não se solidarizam e estão fazendo festas por aí.

Escrevi em português, espero que você consiga alguém para traduzir essa carta. Aguardo a tua resposta. Espero estar aqui ainda quando ela chegar.

Um grande abraço de alguém que te admira.

Alê Magalhães

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Alê Magalhães

Leitora. Professora. Escritora. Administra o instagram literário @literaleblog.