Brava Serena, Eduardo Krause

Alê Magalhães
5 min readOct 22, 2019

“Tudo está à mercê dos celulares, esses olhos que procuram e apontam, gravam e filmam. Pequenas feras que nunca se saciam, aprisionando momentos em fotos que jamais serão impressas e filmagens que nunca serão assistidas.” (p. 54)

Há umas semanas, recebi um e-mail marketing cujo texto falava sobre quantos livros ainda nos restam ler quando já chegamos à casa dos quarenta anos. Considerando o número de livros que a pessoa lia por ano e a expectativa de vida que ela traçou para si mesma, chegou-se à conta de dois mil livros. Então, como decidir que livros seriam lidos? Em suma, era mais ou menos isso que dizia o tal texto que fiz questão de espalhar para os amigos. Vocês não imaginaram que eu ia passar nervoso sozinha, né!

Acho que dá para perceber que fiquei um pouco desconcertada, para ser bastante eufêmica, com esse e-mail que vendia um curso sobre um livro — muito bom, aliás — e que eu até já havia lido (ufa, menos um para entrar na lista de livros para ler antes de morrer). Fato é que também resolvi fazer as contas, apesar de nunca ter sido muito boa em Matemática. Noves fora para acolá, cheguei ao número de mais ou menos 800 livros. E o que ler: clássicos, contemporâneos, literatura escrita por mulheres, poesia, romances cuja editora ou autor me pague para ler e comentar — os famosos publis editoriais, livros de não ficção, leituras para o pós-doutorado, projetos coletivos? Essa dúvida ficou rondando a minha cabeça, mas foi por pouco tempo. Para minha sorte, recebi essa mensagem bombástica na mesma semana em que aconteceu a Primavera Literária, no Museu da República. Acabei escolhendo como próxima leitura um livro da Editora Dublinense/Não Editora, cujo autor, Eduardo Krause, também é livreiro nas horas vagas (ou seria nas horas ocupadas?). Só digo uma coisa, foi uma coincidência deliciosa abrir essa contagem maluca de 800/800 com Brava Serena, pois o livro fala justamente de viver plenamente as nossas escolhas.

O segundo romance publicado pelo autor gaúcho — o primeiro foi Pasta senza vino — é daqueles livros que levam o leitor para viajar junto com o protagonista e narrador da história. E eu amo livros que me levam para viajar. É assim sempre que eu leio Alice Munro e ando de trem para lá e para cá pelo Canadá ou quando caminho por Nápoles, com Elena Ferrante. A narrativa de Eduardo Krause nos leva para Roma em dois tempos: o presente e o passado. No momento atual, o brasileiro Roberto Bevilaqua, um quase sósia do ator italiano Marcello Mastroianni, foi obrigado a se aposentar e resolveu passar uma temporada como estudante, aprendendo italiano e revivendo o seu passado. A história que se desenrola em paralelo é a memória de quando ele era um jovem apaixonado e passou a lua de mel na cidade com sua esposa.

Brava Serena, como o próprio título já anuncia, vai se construir a partir de um jogo de dualidades: passado e presente; Brasil e Roma; Ambra e Alice; risadas e lágrimas; Roberto e Serena. Esse jogo aparece em princípio como antítese para, logo em seguida, descobrirmos que, na real, é complementaridade. Não consigo imaginar o que seria do protagonista se não conhecesse Serena, a italiana mais interessante de todos os tempos depois de Lila e Lenu (personagens da tetralogia napolitana de Elena Ferrante). Acho que Roberto seria, por assim dizer, apenas mais um cidadão de bem, pagador de seus impostos, cumpridor dos seus deveres, se é que vocês me entendem. Mas… ainda bem… Serena atravessou seu caminho e acabou fazendo com que ele se desviasse da vida muito certinha que estava levando na sua segunda temporada romana. Achei bem bonita a narrativa dessa amizade que surge entre o velho ranzinza e a jovem que só quer viver a vida de forma intensa e plena.

Roberto tinha até sido um jovem interessante, apesar de eu ter ficado meio assustada de saber que ele seguiu a esposa pelas ruas de tão apaixonado que ficou por ela. Tá okey, isso foi em uma época em que não se achava crushes por meio de aplicativos. Entretanto, todo esse romantismo virou amargor com a morte da mulher e ele chegou para essa nova temporada na cidade das melhores pizzas do mundo com muita nostalgia, restrições alimentares, remédios e mais remédios para tomar. Com tudo isso, se olhássemos somente a superfície, Roberto seria apenas mais um velho chato, que não gostava nem das aulas nem dos colegas de classe. Essa é, aliás, uma reflexão super interessante que o livro levanta, nos fazendo pensar sobre como é a vida dos idosos, por que eles se tornam as pessoas que são, como o sistema os vê ou os ignora se não têm mais idade para serem produtivos, o que eles ainda desejam, como vivem a sua sexualidade. Enfim, o livro passeia por muitas questões contemporâneas, como, por exemplo, a questão da medicalização em oposição a um estilo de vida em que a pessoa não esteja apenas sobrevivendo, mas vivendo os seus prazeres. Roberto também usa um tom bastante ácido para falar dessa nova epidemia existente entre crianças, jovens e velhos que preferem viver dentro de uma tela de celular do que olhar para as belas paisagens que se descortinam e são muito bem descritas pelo escritor. Abri o texto com uma citação relativa a esse tema e marquei outras passagens em que se fala sobre o assunto.

No fim das contas, Eduardo Krause coloca no campo de batalha do seu romance um dos duelos mais clássicos da literatura: eros e tânatos. O embate entre o desejo e a morte é responsável pelo desfecho que nos leva a pensar nas nossas próprias vidas e em quanto a estamos, de fato, vivendo ou só batendo metas de leitura. Brava Serena tem, pois, tudo a ver com essa angústia de que o relógio não para de marcar o tempo e que a nossa vida vai escorrendo feito areia numa ampulheta. Foi ótimo e divertido ter vivido alguns dias com Roberto e Serena para abandonar de vez a ideia de que é possível ter qualquer controle sobre quantos livros ainda vou ler nesta vida.

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Alê Magalhães

Leitora. Professora. Escritora. Administra o instagram literário @literaleblog.