A raposa já era caçador, Herta Müller

Alê Magalhães
4 min readJun 13, 2020

“O homem puxa a mulher pelos cabelos, a mão bate no rosto dela. Depois a mulher chora ao lado da criança e a criança olha pela janela em silêncio.”

Nenhuma das resenhas que eu li/assisti sobre o livro “A raposa já era o caçador”, da Herta Muller, me preparou para o que seria a experiência de leitura deste livro. E, antes que vocês pensem que é uma frase arrogante, explico: não tem nada a ver com os resenhistas, a questão é o livro mesmo. Dito isso, um aviso aos navegantes: esta é uma não-resenha sobre o livro. É mais como uma colagem de pensimentos (pensamentos+sentimentos).

Eu cheguei a 20% (mais ou menos 50 páginas) da leitura do livro sem entender NADA. Não, eu não estou exagerando, repito, eu não estava entendendo nadica de nada. Foi quando resolvi jogar a toalha e disse: aos companheiros de leitura compartilhada Bárbara Krauss e Paulo Lannes “acho que vou desistir”. O livro da Herta Müller — autora que ganhou o Prêmio Nobel em 2009 — é a nossa segunda leitura que fazemos juntos, a primeira foi “O caminho imperfeito”, do escritor português José Luís Peixoto. A gente vai compartilhando nossas impressões no zap e trocando nossos (des)entendimentos dia a dia. Então, quando eu disse, “acho que pra mim não dá”, a Bárbara falou algo que mexeu muito comigo: “as pessoas superestimam entender as coisas”. Pensei: é verdade. Não entender pode fazer parte do processo. E quem disse que todas as leituras precisam ser iguais? Decidi continuar.
Para mim, a maior questão é que não passava por isso há muito tempo. Claro, tem uns autores que ainda me trazem esta sensação, como o Freud e o Foucault, às vezes. Mas a ficção já é um território meu, onde ando até de olhos fechados, por isso me deparar com a linguagem extremamente metafórica e um cenário absolutamente desconhecido em termos históricos e também da paisagem me causou muito desconforto.
Vou tentar explicar mais ou menos o que eu senti lendo o início de livro. Era como se eu tivesse assistindo a uma corrida de revezamento em que não conseguia saber onde estava o bastão de tão rápido que era passado de um corredor a outro. Os painéis que a Herta ia criando me davam a sensação de que eu estava assistindo a uma exibição do Prezi em que cada zoom que era dado numa parte me fazia perder completamente a visão do todo e a conexão com as outras partes. Também pode ser pensado como um quebra-cabeças de cinco mil peças que não temos o desenho de referência para montar.
Entretanto, quando eu “soltei as amarras” do entendimento, a leitura acabou andando e o desconforto com o não entendimento diminuiu. Comecei a fazer umas conexões de personagens e cenários e em um determinado capítulo em que a Herta coloca melancias como metáfora da menstruação, me apaixonei completamente pelo livro.
“Ah, tá, Alê! Mas sobre o que é a história?” Bom, a história se passa na Romênia, nos anos finais da década de 80, em que o país está submetido completamente a um regime autoritário e que sufoca a subjetividade das pessoas a ponto de não conseguirmos muito bem compreender os papéis que cada personagem exerce para além de sua persona pública: a professora, a trabalhadora da fábrica, o médico, o funileiro que se suicida, o barbeiro, o zelador, a filha da empregada. Alguns personagens têm nomes, outros só são marcados pela função que exercem.
O que mais me tocou neste livro foi que, mesmo diante de um regime em que grande parte da população é oprimida, há um grupo que ainda sofre mais violência: as mulheres. Assédio, abusos, estupros. Tudo isso é narrado pela autora e nada é denunciado, porque é praticado por homens que estão em posições hierarquicamente superiores ou simplesmente porque as mulheres não tem voz naquele sistema (e qual é o sistema em que temos voz, verdadeiramente?).

“A respiração dele é seca e curta, sua mão toca a gola da blusa dela, passa pelas suas costas, esqueça o camarada, não se trata disso agora. As costas dela estão rígidas, o nojo não se curva, não tenho verrugas sobre as costas, diz a boca de Adina.”

Não existe, na minha opinião, uma trama central em que a gente possa se prender e aqui eu digo para vocês qual é o caminho que deve ser seguido pela leitura. O que eu acho interessante mesmo é que vocês se percam nas veredas que o livro vai apresentando.

Inclusive, as ausências podem ser mais fortes até do que as presenças, como o personagem Ilije, um companheiro da protagonista Adina que a gente até agora não sabe por onde anda. Os desaparecimentos, as fugas e os enigmas fazem parte de uma linguagem cifrada que precisa ser usada para se proteger da censura e da perseguição de um regime que arrasou com um país inteiro, então a Herta emula esta linguagem em seu livro. O silêncio é outro recurso muito usado pela autora para marcar esta falta de possibilidade de ação, organização e confiança, porque a qualquer momento, alguém pode te denunciar. Afinal de contas, a raposa já era o caçador.

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Alê Magalhães

Leitora. Professora. Escritora. Administra o instagram literário @literaleblog.